Ele não vai mais ler meu livro. Nunca mais vai segurar meu queixo e falar com sotaque que é uma beleza me ouvir dizer os versos de Pessoa. Não vai lancar novos livros que eu compraria depressa e leria com calma, adiando as ultimas páginas porque sabia que levaria ainda um ano ou mais pra sair o próximo. Não vai ter proximo, e eu vou gastar noites relendo as histórias de Blimunda comendo pão de olhos fechados pra não ver dentro do seu amado, e Joana Carda com sua vara de negrilho partindo o chão da Península Ibérica, e a mulher do médico enxergando por todos os cegos, e a morte que pediu autos numa cidade qualquer, e Jesus numa conversa dura com deus e o diabo numa canoa no meio do mar, e Caim revoltado com a injustiça divina.
Por causa dele perdi um voo em Los Angeles sentada na frente do portão de embarque, mergulhada em já não sei qual livro. E os exemplares que restam do substantivo feminino, que eu justifico guardar pra "se um dia o Saramago vier aqui em casa", perderam seu leitor mais importante.
Nunca pensei que houvesse em mim lágrimas por alguém impálpavel, longe do alcance da minha mão. Mas se ele me pegou pelo queixo naquela noite em Botafogo, eu menina de coque e colar de muitas voltas, nervosa de dizer com meu sotaque carioca os poemas que ele devia conhecer há tão mais tempo, ele me pegou pelo queixo como avô, como mestre, e eu nunca deixei pra lá esse momento. Em tudo que eu escrevo ele vive, em tudo que eu leio e me toca o toque dele esteve antes.
É sexta-feira de sol, a Sérvia ganhou da Alemanha, meu amor saiu cedo pro trabalho e eu arrumo a casa de camisola e meias. A vida segue seu curso, mas mais triste. E a dor de cabeça leve que vai vir das lágrimas que agora correm vai me lembrar o dia todo, na reunião, no almoço, no encontro com os amigos, que já não tem mais ele no mundo real. Que bom que tem no meu.