24.7.18

De amor e de leões

A sintonia da vida não cansa de me deixar surpresa. Estou escrevendo um texto de abertura prum livro chamado "71 leões",  da Lau Patrón, relato incrível da sua experiência de passar setenta e um dias no hospital com o João, seu filho que tinha menos de dois anos na época, um livro super lindo e emocionante. Aí quando fui salvar o texto achei um outro chamado "26 de fevereiro", fiquei curiosa porque não me lembrava o que era e era um texto que escrevi no carnaval do ano passado sobre a vovó Elza, e subitamente me dei conta: ela se chama Elza Ramires Leão.

Daí me dei conta de que mamãe se chama Mariza Leão, e eu tenho lua em leão, e daí nasceu meu poema DNA:

Leão no mapa
na cabeceira
na certidão de nascimento

No toque entre os dedos
no branco precoce dos cabelos

Em fitas e fitas
de ácido desoxirribonucleico

Pois mamãe (que se autointitula pro nosso João, seu neto: vovó Leão) me disse que faz vinte anos que a vovó Elza não tá mais aqui com a gente em carne e osso, e aí agora achei esse texto, tô me achando muito loka que não tinha me dado conta de que eu também sou LEÃO (o nome não me chegou mas a força sim, muito). E pensando agora percebo que antes disso tudo hoje cedo eu tava lendo o horóscopo de leão (que é minha lua e eu sempre leio) e mandando prints pro meu boy, que é leonino. Enfim, passei a manhã entre leões e agora me pula esse texto de amor pra vovó, afe, que loucura tanta sintonia... Foi tudo tanto que deu até vontade de vir aqui no blog, eu que ando bem mais que bissexta, sumida mesmo.  ❤

...

26/02/2017

26 de fevereiro. Há um ano atrás nesse dia eu iria casar no civil num cartório em Belém do Pará. Há um ano atrás nesse dia eu chegava sozinha em Barcelona com leveza de adolescente, com o alívio da vida inteira pela frente. Hoje é domingo de carnaval e eu estou em casa costurando uma saia. Não é pro bloco que eu costuro. É pra mim.

Abro a caixa de costura que era da vó materna, dentro dela uma caixinha de louça onde guardo as lantejoulas. É com os dedos dela que eu bordo. Com os olhos dela enfio a agulha na linha. A vó não aprovaria a saia carnavalesca feita de sacos de laranja, mas se orgulharia da minha habilidade na costura. Onde não havia nada, de repente, tudo.

Lembro da boneca de pano que fizemos juntas, os olhos de botão. Coisa de outro século, a infância dela transbordando pra minha. Lembro do travesseiro que ela me deu, cosido à mão, feito de paina de algodão com todas as sementes. Ele foi comigo pra Berkeley na grande viagem dos 21 anos, quando a vovó já não existia no mundo em carne e osso, só nos corações das pessoas, em objetos imantados de afeto e no olhar do vovô quando falava dela. No dia de ir embora embolei a roupa de cama e o travesseiro foi junto pra lavanderia do dormitório. Em meia hora estava eu num cômodo do tamanho do mundo com uns trezentos sacos pretos, abrindo um por um atrás do meu objeto amado. Achei ali pelo terceiro ou quarto, abracei o travesseiro, o homem da limpeza, enfiei ele na mala e trouxe de volta pro Brasil, pra depois perder em algum canto da vida do qual não tenho memória.

O amor não conhece a palavra fim. O amor só aumenta. O amor é de cada um. “Nada do que amei na vida se acabou e mal consigo andar tanto isso pesa”, disse o Gullar. Hoje é 26 de fevereiro. Domingo. Carnaval. Eclipse da lua em peixes. Minha avó morreu há uns vinte anos. Minha avó me abraça nessa manhã nublada e faz carinho nos meus cabelos compridos. “Princeza”, ela me diz, e abre seu sorriso de colar de pérolas. Alalaô, vó.