28.12.11

Would you like to peel a tomato?


Nunca vi esse filme todo, mas amo essa cena. Loucura, ternura, humor, doçura, e o olhar de doida desesperada dela no abraço final, além da frase mais insana que se pode imaginar.

Isso não é um maldito poema

Splash (Bukowski)

the illusion is that you're simply
reading this poem.
the reality is that this is
more than a
poem.
this is a beggar's knife.
this is a tulip.
this is a soldier marching
through Madrid.
this is you on your
death bed.
this is Li Po laughing
underground.
this is not a god-damned
poem.
this is a horse asleep.
a butterfly in
your brain.
this is the devil's
circus.
you are not reading this
on a page.
the page is reading
you.
feel it?
it's like a cobra.
it's a hungry eagle
circling the room.

this is not a poem.
poems are dull,
they make you
sleep.

these words force you
to a new
madness.

you have been blessed,
you have been pushed
into a blinding area of
light.

the elephant dreams
with you
now.
the curve of space
bends and
laughs.

you can die now.
you can die now as
people were meant to
die:
great,
victorious,
hearing the music,
being the music,
roaring,
roaring,
roaring.


a ilusão é que você tá simplesmente
lendo esse poema.
a realidade é que isso é
mais que um
poema.
isso é uma faca de um pedinte.
isso é uma tulipa.
isso é um soldado marchando
por Madri.
isso é você no seu
leito de morte.
isso é Li Po gargalhando
embaixo da terra.
isso não é um maldito
poema.
isso é um cavalo dormindo.
uma borboleta no
seu cérebro.
isso é o circo
do diabo.
você não tá lendo isso
numa página.
a página tá lendo
você.
tá sentindo?
é como uma serpente.
é uma águia faminta
circundando o quarto.

isso não é um poema.
poemas são chatos,
te fazem dormir.

essas palavras te forçam
a uma nova
loucura.

você foi abençoado,
você foi empurrado
pra uma
área de luz
cegante.

o elefante sonha
com você
agora.
a curva do espaço
entorta e
ri.

você pode morrer agora.
você pode morrer como
as pessoas deviam
morrer:
grandes,
vitoriosas,
ouvindo a música,
sendo a música,
rugindo,
rugindo,
rugindo.

A polonesa #3

A vida na hora (Wislawa Szymborska)

A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.

Isso é justo - pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estrela.
E o que quer que eu faça,
vai ser transformar para sempre naquilo que fiz.

27.12.11

Ainda ela

Agradecimento (Wislawa Szymborska)

Devo muito
aos que não amo.

O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.

A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.

A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar.

Não espero por eles
andando da janela à porta.
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo,
o que o amor nunca perdoria.

Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.

As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.

E quando nos separam
sete colinas e rios
são solinas e rios
bem conhecidos dos mapas.

É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
com um horizonte real porque móvel.

Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.

"Não lhes devo nada" -
diria o amor
sobre essa questão aberta.

26.12.11

A poeta favorita do momento

Entre muitos (Wislawa Szymborska)

Sou quem sou.
Inconcebível acaso
como todos os acasos.

Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninhi
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.

No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até gastar.

Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.

Alguém muito menos feliz,
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.

Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.

Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.

Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.

E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou só aversão,
ou só pena?

Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechassem os caminhos?

Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.

Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.

Poderia ser eu mesma - mas sem o espanto,
e isso significaria
alguém totalmente diferente.

24.12.11

Manhã



"Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar.
Não há manhãs sobre cidades ou manhãs sobre o campo.
à hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes
Seja ela a invasora lenta das ruas da cidade que vão leste-oeste
Seja"
                                                                              ("Acordar", Álvaro de Campos)

19.12.11

Ornitorrinco #20 - tiau 2011


OLHA LÁ

oito fragmentos, duas citações, algumas dicas & um poema

1. eu sou aquela que tem calma
    gasto a pele do canto das unhas mais do que doses de uísque
   
2. O "pelo menos" é embaixo, o "ainda por cima" é mais.
     O "pelo menos" é só  consolo.
     O "ainda por cima" é o sim ao quadrado, é alegria sobre alegria, 
     é o bom que não cabe num só fato.
     O "pelo menos" é cesta básica.
     O "ainda por cima" é camembert, e eu mereço esse luxo.

3. é aceitar o risco pra voar mais alto
    é andar sobre brasas pra não pisar em ovos
    é o inimaginável pra chegar no tão sonhado

4. a casa da saudade é a pessoa

5. porque não é justo que eu só reaja
    (não comigo, ser de testa e tetas)
    (não contigo, ombro macio, garras)
    porque é assim devo domar meu medo
    anti-domar-me
    devo ser selvagem

6. eu não fujo mais de nada
    mas não mergulho na piscina de desespero
    eu sento na beirada e espero a dor chegar

7.   estar sozinha é lindo e calmo
      e talvez seja a coisa mais distante do mundo da solidão
      essa formiga que pica o peito e joga a gente pra ser triste na rua

8.   todo o tempo do mundo em que se amou alguém vai doer um dia
       cada palavra, cada segundo
       eu prefiro essa dor - longe, longe, muito longe
       eu quero essa dor do amor demais
       eu quero a inevitável dor do fim - mais, muito mais
       que a infinita dor do não

&

1)  "É tão humano transformar uma liberdade em dor
      e é tão doce quando a vida vem te ensinar sofrimento te dando uma escolha,
      e você roda e gira nas pequenas chamas da possibilidade.
      - Mas é assim que você constrói seu castelo."  (Tony Hoagland)

2) "Eu tenho tido a alegria como dom e em cada canto vejo um lado bom"  (Mallu Magalhães)

&

*** 2011 ficou bem melhor com Everton Behenck, Letuce, Adrienne Myrtes, "Pitanga" da Mallu, Fernando Maatz, Elizabeth Gilbert, "Grande sertão: veredas", Drummond, Tony Hoagland, o "Faceiro&Fascinante" da Bruna Beber, Gabriel Pardal e esse Ornitorrinco.

&

"Se a vida te der um presente, aproveita"
Ela tem me dado vários, entre porradas e passos de dança
Eu mastigo tudo em movimentos concêntricos
Depois bebo chá quente pra digerir

É manhã de quinta-feira e chuvisca no bairro da Gávea
No Japão a radiação chega a Tokio e mergulha a cidade no medo
No meu coração a esperança sacode fitas coloridas
Meu coração é olimpíadas e meninas de malha justa em saltos perigosos e belos

A vida é cheia de sortes e de "como é que isso foi acontecer meu deus"
Tem até breves e adeuses
Tardes de sustos e noites iluminadas

Ela é boa pra mim e eu gosto dela
É pra ela que eu rezo toda noite
Pra ela eu peço e agradeço
Porque eu tô viva, porque eu sinto

E se às vezes é dor outras é esperança
Esse bombom alado cheio de sonhos no recheio
Pássaro transparente com a minha alma no bico
Esperança, esperança, eu te quero, eu te recebo, vem

 
Recadinho do editor:
O ano está acabando, estamos preparando a última edição do ORNITORRINCO de 2011 [#020], e pra você que perdeu algum número, colocamos todas as edições publicadas no nosso site. Pra quem já leu, vale a pena ler de novo.

Quem é de facebook e fica afim de participar do nosso grupo de discussão e novidades aleatórias, é só curtir a página do ORNITORRINCO 

No próximo domingo [ou seja, no que passou] estaremos enviando a última edição do zine deste ano VINTEONZE. Agradecemos à todos os 200 assinantes pela leitura, participação, colaboração, divulgação, compartilhamento e outros amendoins. ORNITORRINCOé um zine de texto, tocado pra frente de forma independente pelo grupo NOMEDACOUSA. Os colunistas merecem entrada franca em todos os churrascos. O editor merece ticket pro Paraíso, mais acompanhante de sua escolha.

Para 2012 estamos preparando algumas surpresas para os assinantes. Especialmente para o aniversário de 1 ano do nosso bicho. Aguarde que vai ser um carnaval.

VAMOQUEVAMO

Todos os objetivos são loucos.

-
Gabriel Pardal
Editor

-- 
--
NOMEDACOUSA - brinquedos&bombas
http://www.NOMEDACOUSA.com

15.12.11

Hoje sim #3



Dores vieram e foram.
Outras apareceram.
A alegria ainda reina majestosa sobre todos os seres que eu sou.
Lucas cantando essa música do Fabio Lima com o Letuce sempre me emociona.
E aquele poema do Drummond diz as palavras definitivas sobre a perda.
Mesmo assim eu escrevi. De outro jeito. Do meu.
E hoje voltar ao palco do CEP com um nome na tela do celular e tantas emoções no peito fez tudo derramar em poesia e imagem e voz. Aqui.
Hoje sim #3.
Que bom que hoje sim.

10.12.11

No cafofo da poesia

E de repente no meio do sábado silencioso e nublado, entre pantufas e travesseiros, chega um email avisando que você é a poeta homenageada num blog super bacana. Aí você se espanta, vai lá, lê, fica feliz, sorri, e agradece. Depois espalha, né? Aqui ó:



7.12.11

Duas Irenes, eu e a literatura

"A primeira vez em que eu me apaixonei eu amei tanto essa paixão que disse não quando o garoto quis me namorar. (...) O que eu sabia era que havia poesia em me manter entrincheirada na janela de minha sala de aula olhando para ele. O resto era prosa. Miolo de pote."
"Eu esperei dela o que eu me daria, mas ela foi mais generosa que eu."
"Odeio gente gentil. Gentileza não é coisa natural, é sem princípios. Gentileza é invenção de vendedor. Valorizo gente verdadeira. E a atenção e o cuidado que se enraízam em sentimentos deixam de ser gentileza. São: atenção e cuidado. Verdade."
"Eu teria dado, de bom grado, dinheiro. Se tivesse trabalho. Eu teria dado a chave do carro. Se tivesse uma porta pra abrir. Eu teria dado uma caixa de bombons. Se tivesse tempo. Eu teria dado amor. Se tivesse."

(Adrienne Myrtes em Eis o mundo de fora)


"Como descrever o amor, o amor que acontece de forma exagerada, amro sem limite, amor sem razão, o amor enlouquecido? Sim, os sentimentos do mundo não cabem em palavras. Tentamos de fato esticá-las, decerto tentamos moldá-las, mas elas, as palavras, teimosamente, elas não nos acompanham - a paixão, dois jovens na estação de metrô, rapidamente nós os vemos, eles se beijam, impossível descrever com palavras aquele instante de paixão, o trem parte, eles ficam na estação, impossível, imagens rápidas, as palavras não dão conta das imagens, as palavras não dão contado abstrato, as palavras, senhores, as palavras não dão conta da vida - descrever o amor, impossível: as palavras não acariciam, não tocam a língua, não se esfregam, não gemem. As palavras não gozam."

(Nilza Rezende em Bocas de mel e fel)


Quatro mulheres. Nilza. Adrienne. Duas Irenes. Não, cinco. Eu, Maria, também. Adrienne e Nilza escreveram. Durante anos, em silêncio, com técnica, com paixão, se derramando, pensando, sentindo, com esforço, com prazer, vencendo dificuldades, libertando segredos, inventando vidas. Eu, Maria, li. Agorinha, esses dias. E me espantei com o que li. Literatura. Histórias e linguagem se enroscando daquele mais delicioso jeito. Prosas diferentes, com gosto próprio, ritmos que te pegam pela mão e te guiam pelas páginas. Cada uma com o seu. 

E de repente o espanto: serão duas Irenes? É possível isso? Era. É. Histórias tão diferentes, uma mulher refém das convenções sociais, dividida entre dois homens, outra mulher rompedora de regras revisitando dores numa visita à família. Duas mulheres que não sabem viver o amor. "O amor e eu não fomos feitos um pro outro", diz a Irene de Adrienne. "O amor não é tudo na vida, respondi como se precisasse sempre sujar a alegria", diz a Irene de Nilza.

Em Bocas de mel e fel quem comanda é ela, Irene. É por ela que sabemos deles, Antônio, Pablo, é ela que nos conduz. Eis o mundo de fora tem duas vozes: Irene e Luis. Ela dura, prática, ele derramado, intenso. Cada um com seu tempo, com suas tramas, seus pontos de vista, e assim vamos navegando entre versões, bocados de história aqui e ali, pela boca de um e de outro.

Dois romances que me tiraram do prumo. Nilza é minha tia, e eu conheço muito e adoro sua literatura vertiginosa e desmedida, desde o incrível "Um deus dentro dele, um diabo dentro de mim", que me tomou de assalto quando foi lançado. Adrienne foi presente pernambucano, companheira de Mostra Sesc de Literatura Contemporânea mês passado, e foi com genuíno espanto que devorei seu livro em tardes e noites de hotel e anotei suas frases - quase versos - no caderno de anotar coisa boa no voo de volta pra casa. 




Nilza. Adrienne. Duas Irenes. Antônio, Pablo, Luis. Misturem-se com essa gente. Bagunça a cabeça e dá um direto de esquerda no peito, às vezes, mas como é bom sentir assim, livro na mão, letras nos olhos, admiração e espanto bom.

4.12.11

Jantando com Pessoa


Pros amantes da poesia dele e de comida da melhor qualidade, semana que vem tem repeteco do imperdível "À mesa com Fernando Pessoa": eu nos poemas, Ana Maria Roldão nas panelas e na história dele, com vinhos pra completar o festim! Vai ser 3a feira, dia 6, às 20h, e ó, tem que fazer reserva! Mal posso esperar pra dizer poemas lindos comendo muito bem, melhor impossível!

3.12.11

Sem Gelo

Fernanda D'Umbra diz coisas. As coisas. De um jeito que. Eu leio e fico ali, lendo. Coisas como: "EU LEVANTEI DA FRENTE DO COMPUTADOR como quem vai embora para sempre > faço isso quando vou voltar: faço uma cara de quem está indo embora para sempre > fiquei parada olhando meu pé e sentindo ciúme da mulher do barzinho > não frequentava mais bares por ordem judicial e andava já cansada de ver como você ia se virar diante de trinta e duas doses de paciência e abandono > parei de olhar meu pé e me pus a olhar a rua > chovia canivetes > peguei três e guardei na bolsa."