30.8.11

Todas as formas de dizer não



Conheci o Paulo Scott no Rio. Nada demais, o cara mora aqui e eu também, fora o fato de que ele, super respeitado e celebrado escritor gaúcho, fechou a Festipoa desse ano, e eu estava lá, no Beco, casa clássica da boemia de lá, na platéia de A timidez do monstro. Mas foi só depois que a gente se encontrou, primeiro no mundo virtual e depois pra um café muito adiado e finalmente concretizado. Batemos papo, trocamos livros, e ele me fez esse convite que eu aceitei na hora, pra gravar em vídeo o texto dele chamado "Todas as formas de dizer não". O título já me interessou, eu pra quem o 'não' é sempre tão manhoso na boca, e fiquei mesmo honrada pelo convite: eu ia então virar parte do espetáculo que tinha visto e de que tinha gostado tanto lá em POA? Aceitei na hora mas demorei pra gravar, e agora, mais de um mês depois, muito mais do que isso, aí está: "Todas as formas de dizer não", de Paulo Scott, por Maria Rezende. Vamos ver se eu aprendo alguma...

28.8.11

Poemas pro cinema

Dois poemas escritos especialmente pro roteiro de um longa que nunca (até hoje...) saiu: "O Caçador de Imagens" era o título, escrito por mim e pelo meu pai em muitas etapas. Começamos em 1996, antes da filmagem do Guerra de Canudos. Retomamos em algum momento e depois de novo em 2003, quando eu escrevi esses poemas pra serem da Paula, a protagonista, uma poeta que dizia versos em bares, como eu fazia. Alter ego total mas mais sombria, a Paula. Hoje, quase exatos oito anos depois, achei os dois num bloquinho antigo resgatado junto com os últimos cadernos e agendas que tinham sobrado na casa dos meus pais. Tão curioso ler o que se escreveu há tantos anos... Ainda mais porque esses foram os únicos poemas, que eu me lembre, que eu escrevi com um objetivo que não fosse dizer o que eu, Maria, queria dizer.

Quero um poema triste
um poema que fale dessa dor sem jeito que eu às vezes sinto

Mas tem tristeza que não quer ser fala
tristeza do tipo que cala e pede segredo
lágrima sem soluço no silêncio do próprio abraço

A dor que eu hoje sinto
é a felicidade que eu às vezes minto
é o horror cotidiano entrando pelas gretas
é o olho roxo de dentro depois das brigas em vão

O poema que eu escrevo
não se escreve por si mesmo
não me mostra seus caminhos
não me abre suas clareiras

Esse poema simplório quer só o direito de ficar calado
de se manter inescrito
como nota antes da música
filho que não nasce antes da hora

A tristeza que eu escrevo é falsa.
Triste é o poema que me cala

(14/08/2003)



A imagem já nasceu perdida:
podia ser caminho
podia ser varanda
podia ser cidade com todas as janelas
ou quem sabe rua nítida com as pedras pelo chão

Era um sonho mas não era
a imagem me chamando
e eu tinha que ir e ia
mas onde era, e o que era
eu nunca podia saber não

Moça de sina de sombra
fui seguindo aquelas pistas
perseguindo aquele sonho
que depois não era sonho
nem era vida real:

Era mais um pesadelo que gruda na idéia da gente
e a cidade avarandada ficou logo toda escura
e a idéia de poesia virou só tristeza
a nitidez virou desfoque
e a rua se fechou pra mim

Não tem mais sonho nem poesia
nem tem mais aonde ir
O meu caminho é sem ida
Esse lugar que eu não encontro
deve ser o que chamam vida

(19/08/2003)

24.8.11

A tal da parceria



seria o #18, mas não é não.
um por dia já não é há tempos, embora ainda seja legal, e muito.
pode se chamar assim o que talvez comece aqui:
hoje sim.
projeto "hoje sim": um vídeo sempre que.
hoje por exemplo, sim - e também todas as formas de dizer não -

21.8.11

Humildadezinha dominical

Falas de cizilização, de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as coisas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

(Alberto Caeiro)

15.8.11

Ornitorrinco #11: Labuta

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OLHA-LÁ


"Montar é como poesia. Não, montar é poesia"

George Lucas


Meus filmes eu faço com palavras. Crio imagens, invento cores, procuro um ritmo, uma música, expresso o que era segredo borrando de azul papéis ou batendo de leve em letras - branco sobre preto - que se desenham - preto sobre branco - sobre a tela. Eu me descubro escrevendo, alcanço o músculo que treme involuntário, semi-imperceptível sob a pele. É de palavra a minha essência.


E faço poesia com as imagens alheias. Alguém sai à caça, alguém sonha e planeja, alguém capta tremeluzente o reflexo do índio no primeiro espelho, e manda pra mim. Caquinhos de gentes, coisas, lugares, diálogos interrompidos, olhares: uma visão. Eu, a moça da ilha, quieta, semi-solitária, misturo tudo, invento versos, estrofes, subo a parede do edifício que não sonhei, onde não morarei, mas que ganha forma pelas minhas mãos. É com imagens que eu passo meus dias.


A vida dupla não foi planejada, nunca sequer imaginada, mas me cai bem. Gosto de gastar as tardes no mundo do cinema, de estar à serviço do sonho do outro, gosto de ser a ponta final do que começou igualmente solitário: alguém num quarto qualquer tendo uma ideia e começando a inventar um mundo novo, com gentes e lugares imaginários. Essa fagulha, a ideia, que contagia tanta gente até chegar na minha mão, tem que ser palavra antes de ser imagem, tem que ser escrita antes de ser viagem, mas eu, a moça das letras, eu só chego depois, na hora do quebra-cabeças.


Monto, monto, monto, ouço vozes, me emociono, sorrio sozinha na sala pro sorriso seis vezes repetido na tela, leio em voz alta a estrofe que é cada cena, penso no poema: que cara ele terá? Quanto tempo? Que potencial explosivo de gargalhada ou lágrima surgirão quando todos os versos se juntarem? Impossível prever.


Em casa, de noite, às vezes nas manhãs, brinco de literatura. Escrevo poesia. Também escrevo prosa, aqui, agora. Parece fácil escrever. Parece impossível. É os dois na mesma inseparável medida, já disse o Faulkner. Minto. A prosa não é tão matreira, se deixa colher sem tanto dengo - talvez porque não queira ser a minha preferida. A poesia sabe bem quem é, o potencial de beleza que tem quando eu acerto na veia, e faz doce pra mim. Deita maneirosa na cama, mostra os peitos, morde os lábios, depois desiste, levanta e faz um sanduíche, eu pau duro ali, molhada, ela nada, vê tv na sala. Mas quando decide, a danada, é festa no terreiro, espocar de pipoca na panela: barulho bom nos ouvidos, nuvem a derreter na língua.


E a poesia me joga no palco. Mulher inteira, cinema em 3D, dou corpo ao que disse silenciosa, show de strip na alta da madrugada, desenrolo o novelo do que era pra ser papel, dou à tapa a cara, o peito, os pés, borboletas no estômago e firmeza nas escápulas. Ali sou exibida, ali me vingo das horas a sós na ilha, na cama, no quarto vazio, nas teclas, rabiscos, rascunhos, rasuras. Ali me enfeito e tenho eco e tenho olhos grudados na pele e aplausos, e toques de mãos com palavras doces no final.


Eu danço valsa e umbigada. Escrevo filmes, edito palavras, dou corpo ao que vivo. Chego fresca e virgem pra cada amante e volto sorrindo pra casa.



|Maria Rezende



(texto publicado no #11 do Ornitorrinco, revista literária virtual quinzenal editada pelo querido Gabriel Pardal com colunistas bacanas e edições temático-bacanérrimas)

14.8.11

Vovó

Eu tenho 32 anos. Minha avó tinha 92. Ganhei dela de presente uma família rara, que ela uniu com mãos de fada, pra além de todas as diferenças. Fui amada por ser quem eu sou, sem poréns, cabendo tudo no abraço desse amor: cortar o cabelo joãozinho ("em você tudo cai bem"), namorar um rapaz que não tinha um bom emprego estável ("ele é muito batalhador, trabalha duro, vai crescer sempre"), morar junto sem casar ("amigado com fé, casado é"). Nos vimos em todas as datas festivas - só passei um Natal fora da casa dela, com meu irmão num quarto de hotel em São Francisco - mas principalmente passamos juntas tardes e noites banais, mostrando os pares de botas que comprei nessa viagem, vendo novela, jantando na copa sem estardalhaço, sem a mesa com mil pratos, a delícia da intimidade com essa avó que vivia com a casa cheia. Ela foi ao lançamento do meu primeiro livro e me ouviu dizer "adoro pau mole" e no final me abraçou emocionada, eu constrangidinha e ela inteira ali, olhos brilhando, me dizendo de novo "parabéns, maria, que beleza". Dela herdei talvez a oratória, o prazer e o talento de falar em público, e pra ela disse poemas na sala de jantar pensando rápido pra não dar furo e não aparecer um palavrão nem nada sexual no meio de um verso. Dela ouvi histórias antes de dormir, com ela aprendi a bordar tapetes com lã colorida e agulha grossa, nas noites da fazenda de luz fraca e brilho imenso naquela sala. Ela era "vovó Nilza" e virou só "a vovó" quando a vovó Elza, minha querida, morreu há dezesseis anos - sim, eu tive duas vovós amadas, e com as duas convivi cotidianamente e intensamente - e ela era às vezes "vovozinha", pra espanto dos amigos que me pegavam falando com ela no telefone. Pra ela eu não contei minhas intimidades e com ela compartilhei o melhor que vivi, porque pra problema a gente tem pai e mãe e era bom demais a vovó ser o espaço da suspensão, da mágica, mulher encantada que eu nunca vou perder, nunca: ela vai andar comigo e quando der aquela vontade de ligar pra contar uma novidade eu vou contar sem telefone, e quando der vontade de contar ao vivo eu vou contar de olho fechado bem quieitinha, e vou ter o carinho dela como sempre tive, como tenho agora, gravado em alto relevo no meu coração.



Hoje, mais do que nunca, esse poema de um ano atrás faz sentido, e eu acredito em cada palavra do que escrevi, e disse ele ontem bem bonito na despedida dela, último poema dito pra vovó naquela sala, e que bom ter essa certeza expressa em palavras pra dizer pra ela que gostava tanto das minhas.

quando chove e você fica preso entre latarias e luzes derretidas
quando o vermelho é a cor da noite
quando a comida na barriga não curte o espetáculo
e o ponto de gatilho no nordeste das costas te cutuca

de repente uma voz de homem avisa
"eu tive uma onda de comunicacao"
e o amor que não se faz naquela sala naquela hora
brilha muito mesmo assim, na ausência

a ausência não é falta, outro homem me diz
mas as roupas sem mais uso no armário não querem saber de poesia
todo o tempo do mundo em que se amou alguém vai doer um dia
cada palavra, cada segundo

eu prefiro essa dor - longe, longe, muito longe
eu quero essa dor do amor demais
eu quero a inevitável dor do fim - mais, muito mais
que a infinita dor do não

9.8.11

Porque não é justo que eu só reaja
(não comigo, ser de testa e tetas)
(não contigo, ombro macio, garras)

Porque é assim devo domar meu medo
anti-domar-me
devo ser selvagem

Porque é injusto
eu, flechas nos cabelos
devo estar nua
devo arriscar-me

Instinto ativo
eu carvão em brasa
Semi-vulcão
eu erupção, eu lava

Eu a que queima
eu a que é queimada
eu búfalo
eu leão que dizima a manada

Eu ornitorrinco, eu o esquisito
testa tetas bico patas
eu esdrúxula, eu toda a coragem
dedos mãos ações viagem

8.8.11

De novo

"Repetir, repetir, repetir
até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo."
(Manoel de Barros)

O verso me invadiu no começo da tarde, e eu mal sabia quão exato ele seria pro fim da noite. Como pode o instinto falar tão alto certas vezes e sussurrar tão baixinho outras que a gente queima pernas e bandeiras sem ouvir direito?

Então hoje teve ensaio e foi novo e repetido e bom. Gritei, gritei, gritei até a cratera exaurir-se. Isso é Adélia e hoje tô toda trabalhada na repetição do verbo três vezes no começo do verso. Lá, no ensaio, repeti muito mais que isso, pratiquei o dom do estilo e praticarei muito muito mais nos próximos dias. É esquisito e prazeroso. Tem um que do cotidiano do ator que não se parece com mais nada que eu faça ou tenha feito - e eu que por tantos anos tive o "não" na ponta da língua quando a pergunta era "você é atriz" já penso se hesitarei depois que estrear. Os ensaios não legitimam mas nome num cartaz e luzes e platéia sim?

Então teve ensaio e eu tô cansada e ofegante e feliz. Nem tudo é fácil, muito me deixa insegura, mil vezes me sinto ridícula e outras tantas exponho as vísceras. Era o que eu queria. É o que eu quero. Obrigada Ana Kutner por me dar a mão nessa hora.

7.8.11

ouvindo elas brincando pensei que

abandonar

é uma palavra que não devia estar na boca de nenhuma criança

nem em letra de música

muito menos na frase

"vê se não vai me abandonar"

mesmo que embalado em melodia melosa

-

abandono é ida ali na esquina com uma dose de dor forte demais até pra adulto
até pra marmanjo
até pra mim

abandonar
é verbo fora de conjugação na minha gramática
é igual a zero na contagem de palavras do meu discurso

(e que assim seja)

2.8.11

agora

quando mais se precisa dormir a cabeça não para de pensar que precisa dormir porque há montagens e ensaios e gravações e visitas e aulas de yoga a fazer e é preciso dormir, pensa a cabeça, pra dar conta de tudo, dos ensaios das montagens da yoga e ela não pode esquecer da maquiagem quando acordar pra yoga, pensa a cabeça, porque gravação pede rímel mas visita pra avó pede tempo e montagem de longa pede ócio criativo e ensaio pede corpo presente, pensa a cabeça, e sem sono não há blush só passado só futuro, mas isso é pensamento burro, pensa a cabeça, o que é preciso é só
d
e
s
c
a
n
s
a
r
pensa a cabeça

O bicho ao vivo

|OLHA-LÁ

Decidir o cardápio é uma arte

Das mais subestimadas do mundo moderno - por quem não tem que decidir o cardápio, que fique claro.

E é capaz de proporcionar variados graus de prazer, dependendo do sujeito da decisão e das circunstâncias em que o fato (ato) se dá.

Aqui em casa é sempre às 2as feiras, e o grau de sucesso da operação define a qualidade da semana - de onde se depreende a importância do ato (fato).

O sujeito que sou eu adora assuntos de comidas e receitas, e pouco me dá se o vidro da janela está embaçado se o tempero estiver gostoso, e pra que desempoeirar cantos escondidos atrás de móveis se é tão melhor gastar esse tempo testando receitas?

As circunstâncias é que embolam a mistura.

Às vezes há a sorte de se deparar com uma feira ou, bendito encontro, um ônibus sacolão, essa maravilhosa invenção dos subúrbios que invadiu amorosamente as áreas nobres da cidade. Ao invés de bancos de couro e encostos de cabeça, caixas com frutas e legumes, custa tudo o mesmo preço, você enche a sacola de maçãscenourasbeterrabasbananaslimõesrepolhoroxobatatasbaroas e pesa de uma vez, e é sempre barato e fresco e animado. Quando isso acontece a 2a feira é alegre, é dia de olhar pro que estava bonito e veio parar em casa e deixar brotarem possibilidades: isso refogadinho, aquilo no vapor, aquele outro no forno, sopa daquilo ali - sinfonia tocada de ouvido, puro instinto, só prazer.

Nem sempre, claro está, essa alegria se dá.

Às vezes chega o dia 'd' ('d' de diarista, 'd' de decisão) e a geladeira está vazia, e não há na cabeça nenhuma ideia, nem no corpo a menor vontade de descer até o mercado, garimpar entre berinjelas moles e espinafres murchos alguma folha, alguma raiz que possa virar almoço.

Mas o cardápio é implacável. A diarista espera, olhar impaciente, a lista que vai virar calor fumegante no fogão, cheiro de dar inveja aos vizinhos.

E o sujeito abandona teclas e telas, senta na cozinha e decide: compre isso, faça aquilo, tarárárárá.

Ou se rende e entrega o problema (o prazer) nas mãos objetivas da diarista: desiste da decisão, e delega.

2a feira aqui é assim, já nasce com cheiro de alho, vem grávida do assunto amoroso (trabalhoso, delicioso) do que comer.

A 3a feira traz o alívio de acordar sem a faca no pescoço da escolha, mas o descanso é breve. Os dias esvaziam os potes na geladeira e o sábado já anuncia a chegada silenciosa dela com a frase na ponta da língua: "Dona Maria, o que vai ser hoje de comida?".

|Maria Rezende

(Coluna de estréia no Ornitorrinco #10)