27.8.12

Ornitorrinco #36


5:15 da manhã na floresta. Barulho de cachoeira que aumenta, mais do que quebra, o silêncio. Céu pretinho, sirene na distância, manta nas pernas, o branco da tela do computador. Em algum longe um cão uiva, em algum canto uma gata branca de rabo preto dorme culpada. Uma noite mal dormida e serena. Cocô, tosse, leite quente: brincar de ser mãe na madrugada.
Depois escrever. Os galos começam a cantar ainda tímidos, o céu já azulou marinho ou é só desejo? Ver amanhecer é raro e bom pra quem nunca foi monge nem vigia noturno. Silêncio. Ele hoje quer dizer: fim da tosse, nenhum miado, a eternidade líquida da cachoeira.
Ler Clarice e descobrir que não foi acaso nunca ter lido Clarice. Não gosta de Clarice, e sabe que é inevitável que isso soe como burrice ou provocação. E no entanto descobrir que depois de umas páginas de Clarice escreve diferente. "A eternidade líquida da cachoeira". Mas ao contrário de Bethânia não queima nunca o trabalho dos dedos, não rasga e quase não reescreve. Deixa o cheiro de Clarice entrar, sem devoção ou repúdio. "Repúdio". De novo.
Agora sim, o azul é fato. A imbaubeira já se revela pelo vidro da janela. Já desejou um vestido cor de céu de quinta-feira com estampa de imbaubeira. Tom de amanhecer de fim-de-semana também é bonito. Lembra da história contada pela avó, a princesa com um vestido de céu estrelado com todas as constelações, outro de fundo do mar com milhares de peixinhos, e mais quais mesmo? Eram sete. Sempre são sete. Anões. Vestidos. Anos de diferença.
Mais galos. Mais folhas recortadas contra o céu que clareia. Do outro lado do vale duas luzes são as únicas lembranças de que o mundo existe fora daqui. 
Aqui louças na pia, um cobertor feito de sonho, uma pedra de sal dos Himalaias, uma samambaia magrela. O dia nasce azul bebê na montanha. Faz frio, a lombar reclama, a cachoeira derrama, escrevo. No quarto ao lado um homem dorme. O sentimento não. O sentimento é o insone mais feliz do condado. 

.:. Dessa vez era tema livre, e pra mim a madrugada virou beleza. A Letícia sente saudades de telepatia, o Ramon quer muitas páginas, o Julio tá sanguinário, a Keli teve uma epifania podológica, o Franco vislumbrou um carná carnal. Ficou supimpa, viu? Recomendo.


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