17.2.11

Bóia


Acorda, Maria
(Carlos Drummond de Andrade)

Acorda, Maria, é dia
de festival.
Violas já vem dançando
no doce do canavial.
Acorda, Maria, é dia
de prazer municipal.
A bebida está pedindo
pra ser bebida
a comida reclamando
pra ser depressa engolida
a risada quer ser rida
o namoro namorado
o peixe quer ser pescado
o sonhado ser vivido.

Maria, acorda que é dia de acontecer
de casar e de ter filhos
e cada filho crescer
e tomar seu rumo
e tomar seu rumo
e alguém na varanda
soletrar o espaço.

Acorda, Maria, é dia
de matar formiga
de matar cascavel
de matar tempo
de matar estrangeiro
de matar irmão
de matar impulso
de se matar.

Acorda, Maria,
todos já de pé
muitos já correndo
a gritar por ti.
Quem dorme no bairro, quem?
Não há paina de dormir
quando se espera o sinal
dentro do sinal fechado
e milhões de sinais
escondem o sinal.
O sinal afinal
é sim ou al?
E se ele apaga
antes de acender?
se ele acende
e ninguém entende?
Maria, acorda, é dia
de esperar a vida inteira
pelo sinal.

Acorda, Maria: é dia
de dizer que é dia
de fingir que é dia
de preparar o dia
de ir na folia
esquecer que não é mais
ou ainda não é dia.

Acorda que o telefone
está chamando, Maria.
O navio está apitando
e vai soando a sineta
do presídio.
Esvoaça
a papeleta do fiscal.
A mãozinha da garota
bate no portal.
Acorda, Maria, é samba
sem carnaval.

É dia
de tirar a roupa da alma
no sofá
de pesquisar o verme
em cada maçã
de inventar o verme
a cada manhã
de saborear o verme
que nem hortelã.

É dia, atenção, de sexo
há milênios recalcado.

A vara e a concha unidos
no abraço fotografado
e tudo em verde fichado
pra ser bem computado.
Quem tem amores, desame-os
quem tem baú, que o destampe
quem não tem nada, que tenha
o que que ter pra contar.

Depressa, Maria, a praça
é uma orelha gigante
que não escuta e que passa.
Mas acorda por favor
ou por violência. É dia
de prestar contas, é dia.
Foi antecipado
o Juízo Final.
Em cada quarteirão
o oficial de justica
divina
faz a citação
sem abrir a boca
e os nomes se imprimem
na retina
as sentenças se gravam
na pele.
Acorda, Maria, assiste
a teu julgamento em código.

Principalmente, Maria,
é dia
dia constante e durante
acima dos cem mil dias
dia so, dia sem dia
sem outro dia que diga
tudo que cabe num dia.
E um dia sem folhinha
sem gala de alvorecer
sem vontade de fluir
sem jeito de findar.

O que lhe falta em clareza
e sobra em altura
e resta em desejo
ninguém decifra.
É dia, Maria, dorme
até que passe este dia!

...

(não vou dormir nem morta. não perco um minuto desse dia.)
("o que lhe falta em clareza e sobra em altura e resta em desejo ninguém decifra".)
(é um privilégio ter esse nome.)

2 comentários:

Renata Fern disse...

Essa poesia é um arraso total! Por que minha mãe não me deu o nome da minha vó... hahahah...

Grande Drummond!

maria rezende disse...

incrível, né? fiquei boba de não conhecer! que bom ainda ter tanto pra surpreender a gente na vida e na poesia!