- OLHA-LÁ –
A gente precisa conversar sobre o tempo. O livre. Tem mesmo? Ou tem, mas acabou?
Alguns são claros. Olhar pro teto do quarto deitada na cama. Cozinhar sem pressa, só prazer, ouvindo a música que vem da sala. Conversar potoca com quem se ama e dar danoninho na boca de uma filha que não é sua. Mas a maioria me confunde. Ver a vida dos outros na tela do computador é? Ler revista de fofocas esperando a tinta agir nos cabelos, é? E escrever sobre o tema proposto pelo editor? Ou isso é tempo preso? E se é, quem foi que prendeu, pra gente pagar a fiança e poder soltar? Ah foi a gente mesmo, foi? Ah tá…
A
gente diz que ter ele é o que mais quer, mas eu não sei não. Porque
parece que assim que ele aparece a gente inventa ocupação. Tirar o
esmalte. Ligar pra amiga. Procurar online o adesivo pra porta do carro
que chegou da oficina desamassado mas sem decalque. Ir ao mercado.
Escrever sobre o tema proposto pelo editor.
Tempo
livre. Que tem, tem. Escrever sem tema. Olhar as unhas dos pés
coloridas dentro da banheira ao som de Leonard Cohen. Ler o jornal de
anteontem vendo o dia entardecer pela janela. Enfiar linha na agulha e
dar pequenos pontos em algum tecido reinventando tardes macias com
cheiro de casa de avó. Pintar os olhos sem festa à vista pra piscar
bonito na câmera do laptop. Juntar um poema com uma música com umas
imagens em movimento e inventar o novo.
Às
vezes é de manhã, roubando deliciosamente do dia útil lá de fora. Em
geral é de noite, roubando - com olheiras - da cama que chama ali
dentro. Eu gosto mesmo é quando é de tarde, e o céu azula daquele meu
jeito preferido enquanto eu não aproveito pra nada, e nem em olhar o céu
azulando eu penso. Só fico existindo, entre cheiros quentes, agulhas de
buracos finos, telas e páginas. Ou só o teto do quarto, macio,
derretendo, enquanto os olhos vão fechando no melhor dos sonos. Se as
algemas são minhas eu tenho a chave, se fui eu que prendi então eu
solto, que tudo que existe, existe melhor livre, e o tempo não havia de
ser exceção.
_Maria Rezende
(Texto do Ornitorrinco de hoje. Edição #22. Tema: tempo livre. Alegria especial pela estréia da querida Keli Freitas, atriz e escritora, mais uma a provar que fazer uma coisa só da vida está cada vez mais demodée entre as minhas pessoas. Só li o bicho agora porque passei a tarde numa pesquisa seríissima sobre o assunto, deitada num banco de cimento na praia do Leblon ouvindo o disco do Marcelo Janeci inteirinho, deixando o olho fechar sempre que ele queria e nos intervalos vendo passarem gaivotas em balés deliciosos ou em vôos solo cheios de atitude - quem são essas gaivotas que não querem o bando e seguem solitárias? e quem ensina as outras a dançarem tão bonito? -, crianças de casacos coloridos, casais de mãos dadas e algumas senhorinhas de cadeira de roda. Todo mundo exercitando a coisa e eu mais que todos, nem me mexia, só sendo ali no meio da rua, tinha tempo que eu não brincava de tempo livre desse jeito. Foi bem bom. Recomendo.)
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