15.8.11

Ornitorrinco #11: Labuta

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OLHA-LÁ


"Montar é como poesia. Não, montar é poesia"

George Lucas


Meus filmes eu faço com palavras. Crio imagens, invento cores, procuro um ritmo, uma música, expresso o que era segredo borrando de azul papéis ou batendo de leve em letras - branco sobre preto - que se desenham - preto sobre branco - sobre a tela. Eu me descubro escrevendo, alcanço o músculo que treme involuntário, semi-imperceptível sob a pele. É de palavra a minha essência.


E faço poesia com as imagens alheias. Alguém sai à caça, alguém sonha e planeja, alguém capta tremeluzente o reflexo do índio no primeiro espelho, e manda pra mim. Caquinhos de gentes, coisas, lugares, diálogos interrompidos, olhares: uma visão. Eu, a moça da ilha, quieta, semi-solitária, misturo tudo, invento versos, estrofes, subo a parede do edifício que não sonhei, onde não morarei, mas que ganha forma pelas minhas mãos. É com imagens que eu passo meus dias.


A vida dupla não foi planejada, nunca sequer imaginada, mas me cai bem. Gosto de gastar as tardes no mundo do cinema, de estar à serviço do sonho do outro, gosto de ser a ponta final do que começou igualmente solitário: alguém num quarto qualquer tendo uma ideia e começando a inventar um mundo novo, com gentes e lugares imaginários. Essa fagulha, a ideia, que contagia tanta gente até chegar na minha mão, tem que ser palavra antes de ser imagem, tem que ser escrita antes de ser viagem, mas eu, a moça das letras, eu só chego depois, na hora do quebra-cabeças.


Monto, monto, monto, ouço vozes, me emociono, sorrio sozinha na sala pro sorriso seis vezes repetido na tela, leio em voz alta a estrofe que é cada cena, penso no poema: que cara ele terá? Quanto tempo? Que potencial explosivo de gargalhada ou lágrima surgirão quando todos os versos se juntarem? Impossível prever.


Em casa, de noite, às vezes nas manhãs, brinco de literatura. Escrevo poesia. Também escrevo prosa, aqui, agora. Parece fácil escrever. Parece impossível. É os dois na mesma inseparável medida, já disse o Faulkner. Minto. A prosa não é tão matreira, se deixa colher sem tanto dengo - talvez porque não queira ser a minha preferida. A poesia sabe bem quem é, o potencial de beleza que tem quando eu acerto na veia, e faz doce pra mim. Deita maneirosa na cama, mostra os peitos, morde os lábios, depois desiste, levanta e faz um sanduíche, eu pau duro ali, molhada, ela nada, vê tv na sala. Mas quando decide, a danada, é festa no terreiro, espocar de pipoca na panela: barulho bom nos ouvidos, nuvem a derreter na língua.


E a poesia me joga no palco. Mulher inteira, cinema em 3D, dou corpo ao que disse silenciosa, show de strip na alta da madrugada, desenrolo o novelo do que era pra ser papel, dou à tapa a cara, o peito, os pés, borboletas no estômago e firmeza nas escápulas. Ali sou exibida, ali me vingo das horas a sós na ilha, na cama, no quarto vazio, nas teclas, rabiscos, rascunhos, rasuras. Ali me enfeito e tenho eco e tenho olhos grudados na pele e aplausos, e toques de mãos com palavras doces no final.


Eu danço valsa e umbigada. Escrevo filmes, edito palavras, dou corpo ao que vivo. Chego fresca e virgem pra cada amante e volto sorrindo pra casa.



|Maria Rezende



(texto publicado no #11 do Ornitorrinco, revista literária virtual quinzenal editada pelo querido Gabriel Pardal com colunistas bacanas e edições temático-bacanérrimas)

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