2.8.11

O bicho ao vivo

|OLHA-LÁ

Decidir o cardápio é uma arte

Das mais subestimadas do mundo moderno - por quem não tem que decidir o cardápio, que fique claro.

E é capaz de proporcionar variados graus de prazer, dependendo do sujeito da decisão e das circunstâncias em que o fato (ato) se dá.

Aqui em casa é sempre às 2as feiras, e o grau de sucesso da operação define a qualidade da semana - de onde se depreende a importância do ato (fato).

O sujeito que sou eu adora assuntos de comidas e receitas, e pouco me dá se o vidro da janela está embaçado se o tempero estiver gostoso, e pra que desempoeirar cantos escondidos atrás de móveis se é tão melhor gastar esse tempo testando receitas?

As circunstâncias é que embolam a mistura.

Às vezes há a sorte de se deparar com uma feira ou, bendito encontro, um ônibus sacolão, essa maravilhosa invenção dos subúrbios que invadiu amorosamente as áreas nobres da cidade. Ao invés de bancos de couro e encostos de cabeça, caixas com frutas e legumes, custa tudo o mesmo preço, você enche a sacola de maçãscenourasbeterrabasbananaslimõesrepolhoroxobatatasbaroas e pesa de uma vez, e é sempre barato e fresco e animado. Quando isso acontece a 2a feira é alegre, é dia de olhar pro que estava bonito e veio parar em casa e deixar brotarem possibilidades: isso refogadinho, aquilo no vapor, aquele outro no forno, sopa daquilo ali - sinfonia tocada de ouvido, puro instinto, só prazer.

Nem sempre, claro está, essa alegria se dá.

Às vezes chega o dia 'd' ('d' de diarista, 'd' de decisão) e a geladeira está vazia, e não há na cabeça nenhuma ideia, nem no corpo a menor vontade de descer até o mercado, garimpar entre berinjelas moles e espinafres murchos alguma folha, alguma raiz que possa virar almoço.

Mas o cardápio é implacável. A diarista espera, olhar impaciente, a lista que vai virar calor fumegante no fogão, cheiro de dar inveja aos vizinhos.

E o sujeito abandona teclas e telas, senta na cozinha e decide: compre isso, faça aquilo, tarárárárá.

Ou se rende e entrega o problema (o prazer) nas mãos objetivas da diarista: desiste da decisão, e delega.

2a feira aqui é assim, já nasce com cheiro de alho, vem grávida do assunto amoroso (trabalhoso, delicioso) do que comer.

A 3a feira traz o alívio de acordar sem a faca no pescoço da escolha, mas o descanso é breve. Os dias esvaziam os potes na geladeira e o sábado já anuncia a chegada silenciosa dela com a frase na ponta da língua: "Dona Maria, o que vai ser hoje de comida?".

|Maria Rezende

(Coluna de estréia no Ornitorrinco #10)

3 comentários:

Anônimo disse...

Delícia de texto, Maria! Beijos, Ana Cláudia.

Anônimo disse...

Divulga os cardápios! Faça nossas segundas ficarem melhor, principalmente pra quem detesta pensar nisto!
Bj
Valeria

maria rezende disse...

Oi Ana, que bom te ver por aqui!
Tia Valéria, também adorei a visita!
Vou postar o cardápio dessa semana, mas depois quero saber se agradou aí! =)
Beijo, Maria