14.8.11

Vovó

Eu tenho 32 anos. Minha avó tinha 92. Ganhei dela de presente uma família rara, que ela uniu com mãos de fada, pra além de todas as diferenças. Fui amada por ser quem eu sou, sem poréns, cabendo tudo no abraço desse amor: cortar o cabelo joãozinho ("em você tudo cai bem"), namorar um rapaz que não tinha um bom emprego estável ("ele é muito batalhador, trabalha duro, vai crescer sempre"), morar junto sem casar ("amigado com fé, casado é"). Nos vimos em todas as datas festivas - só passei um Natal fora da casa dela, com meu irmão num quarto de hotel em São Francisco - mas principalmente passamos juntas tardes e noites banais, mostrando os pares de botas que comprei nessa viagem, vendo novela, jantando na copa sem estardalhaço, sem a mesa com mil pratos, a delícia da intimidade com essa avó que vivia com a casa cheia. Ela foi ao lançamento do meu primeiro livro e me ouviu dizer "adoro pau mole" e no final me abraçou emocionada, eu constrangidinha e ela inteira ali, olhos brilhando, me dizendo de novo "parabéns, maria, que beleza". Dela herdei talvez a oratória, o prazer e o talento de falar em público, e pra ela disse poemas na sala de jantar pensando rápido pra não dar furo e não aparecer um palavrão nem nada sexual no meio de um verso. Dela ouvi histórias antes de dormir, com ela aprendi a bordar tapetes com lã colorida e agulha grossa, nas noites da fazenda de luz fraca e brilho imenso naquela sala. Ela era "vovó Nilza" e virou só "a vovó" quando a vovó Elza, minha querida, morreu há dezesseis anos - sim, eu tive duas vovós amadas, e com as duas convivi cotidianamente e intensamente - e ela era às vezes "vovozinha", pra espanto dos amigos que me pegavam falando com ela no telefone. Pra ela eu não contei minhas intimidades e com ela compartilhei o melhor que vivi, porque pra problema a gente tem pai e mãe e era bom demais a vovó ser o espaço da suspensão, da mágica, mulher encantada que eu nunca vou perder, nunca: ela vai andar comigo e quando der aquela vontade de ligar pra contar uma novidade eu vou contar sem telefone, e quando der vontade de contar ao vivo eu vou contar de olho fechado bem quieitinha, e vou ter o carinho dela como sempre tive, como tenho agora, gravado em alto relevo no meu coração.



Hoje, mais do que nunca, esse poema de um ano atrás faz sentido, e eu acredito em cada palavra do que escrevi, e disse ele ontem bem bonito na despedida dela, último poema dito pra vovó naquela sala, e que bom ter essa certeza expressa em palavras pra dizer pra ela que gostava tanto das minhas.

quando chove e você fica preso entre latarias e luzes derretidas
quando o vermelho é a cor da noite
quando a comida na barriga não curte o espetáculo
e o ponto de gatilho no nordeste das costas te cutuca

de repente uma voz de homem avisa
"eu tive uma onda de comunicacao"
e o amor que não se faz naquela sala naquela hora
brilha muito mesmo assim, na ausência

a ausência não é falta, outro homem me diz
mas as roupas sem mais uso no armário não querem saber de poesia
todo o tempo do mundo em que se amou alguém vai doer um dia
cada palavra, cada segundo

eu prefiro essa dor - longe, longe, muito longe
eu quero essa dor do amor demais
eu quero a inevitável dor do fim - mais, muito mais
que a infinita dor do não

4 comentários:

Anônimo disse...

Mãe, que saudade, que dor no meu coração de te ver, te ouvir, te sentir assim tão viva, tão linda. Mãe, te amo, que bom ser tua filha, orgulho e ternura que levarei pra sempre.

Anônimo disse...

ô q coisa bonita... e chegar aos 92 com todo esse amor em volta, e de salto alto ainda por cima... ô coisa boa... linda a vovó Nilza, Marie, linda, linda. beijos e um abraço apertado, Paula.

maria rezende disse...

Tia Helena (eu já reconheço você, mesmo anônima, viu?) querida, é isso mesmo, amor orgulho e ternura eternos!
Paulete, essa vovó era demais mesmo, lindona e elegante no saltinho!
Beijos, Maria

Daniella disse...

Lindo, singelo e belo!!!